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Número de conflitos por terra e água no Brasil cresce 25% em um ano, aponta relatório da CPT

 

 

 

 

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Só no ano passado foram cerca de 1.576 disputas por terra — um recorde. Mato Grosso é o quinto estado nesse ranking de violência, com situações que envolvem cerca de 63.525 famílias
 
Maria Vitória de Moura¹

Desde 2018, o Acampamento Renascer, organizado pelo Movimento Sem Terra (MST), em Cáceres, no Mato Grosso, vem sofrendo uma série de ataques. Através de uma liminar de despejo, mais de 100 famílias que estavam acampadas no Caranguejão (uma construção na saída da cidade, em direção à Cuiabá), foram transferidas com a promessa de melhores condições. “Ficamos dois anos no Caranguejão, até chegar uma liminar assinada pelo prefeito e vereadores, falando que a gente tinha que sair. Eles disseram que iam mudar a gente mais para trás, porque estávamos enfeiando a entrada da cidade. Nos mudaram para a Cascalheira, onde é o lixão. A promessa era de que eles iam nos dar mais estrutura, água, energia e tudo que fosse preciso, mas nada disso aconteceu”, conta uma das lideranças do acampamento.

De acordo com a liderança, o Caranguejão, “era um buracão onde era despejado esgoto e saíam muitas cobras e caranguejos. Era complicado”, mas o acesso à água era facilitado por uma lagoa próxima. Já na Cascalheira, o acesso à água é um problema. “Estamos passando muita dificuldade por água. Quando os amigos não dão, nós temos que juntar dinheiro e comprar, mas nem todas as famílias têm esse dinheiro. No Caranguejão, nós conseguimos um padrão, então tinha energia, e a água não faltava. Isso era um conforto a mais para as famílias. Aqui, o compromisso que fizeram com a gente não foi cumprido. Em questão de água e estrutura, estamos passando necessidade”. A situação envolvendo o Acampamento Renascer consta no relatório Conflitos no Campo Brasil 2020, publicado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), como um dos conflitos rurais que ocorreram no ano passado.

De acordo com o documento, esse não foi um caso isolado. Os dados da CPT mostram que ocorreram cerca de 1.576 conflitos por terra em 2020, número 25% superior a 2019 e 57,6% a 2018. Esse foi o ano com maior número de conflitos desde 1985, ano em que a CPT começou a publicar o documento. Para se ter uma ideia, foram 157.432 famílias atingidas, número drasticamente maior que 2016, quando a média de famílias em conflito foi de 83.209. Apenas na região Centro-Oeste ocorreram 990 casos de violência. Desses, 554 em Mato Grosso, o quinto estado com maior número de conflitos, envolvendo cerca de 63.525 famílias mato-grossenses, entre elas indígenas, quilombolas, ribeirinhas e, predominantemente, sem-terras.

Amazônia, Cerrado e Pantanal no alvo

Os dados trazidos pela CPT apontam que a maior parte dos conflitos no país envolvem grilagem de terras, desmatamento e invasões territoriais. A Amazônia Legal, composta por seis dos dez estados brasileiros com maior grau de violência no campo, concentra 53,6% desses conflitos, com destaque para a faixa de transição entre o Cerrado e a Amazônia, conhecida como “Arco do desmatamento”, o qual engloba uma grande extensão do estado de Mato Grosso. Os conflitos nessa localidade e no Norte, região com maior número de conflitos no país, aumentaram bastante nos últimos 11 anos, uma consequência do avanço da fronteira agrícola que, após a devastação de mais da metade da cobertura vegetal do cerrado, vem se expandindo em direção a floresta amazônica e o Pantanal, causando sérias consequências socioambientais. 

Fogo às margens do Rio Paraguai, em Cáceres, MT. Foto: João Paulo Guimarães

Esse avanço do agronegócio sobre a Amazônia e o Pantanal reproduz as consequências vividas pelo Cerrado nos últimos 40 anos, como o aumento da violência rural e da devastação ambiental. Os meios utilizados pelos agentes de conflito, principalmente grileiros, empresários, fazendeiros e madeireiros, para aterrorizar e expulsar as comunidades tradicionais de suas terras, perduram pelo tempo e espaço. 

Assim, o relatório feito pela CPT trás uma análise acerca do uso do fogo como arma contra povos e comunidades, demonstrando que os incêndios de casas, barracões, plantações e áreas comuns dentro dos territórios tradicionais é uma ameaça secular e ainda muito frequente, utilizada pelos invasores para desocupar as terras de forma ilegal. O caráter criminoso das queimadas que atingiram o Pantanal no ano passado, também volta essa análise para a possibilidade de que o fogo tenha sido propositalmente utilizado contra as populações pantaneiras, uma vez que, os principais acusados de causar os incêndios pantaneiros foram os fazendeiros locais. 

Essa realidade, de acordo com o relatório, tem ficado ainda mais evidente nos últimos anos, com a política de incentivo à violência contra os povos tradicionais. Isso se fortalece com a noção de que o Estado brasileiro foi responsável por 311 conflitos no campo, apenas em 2020, o que representa um aumento de 591% em relação a 2016. O descaso do governo e a fraqueza das medidas tomadas para conter e evitar as queimadas, que atingiram cerca de 30% da área pantaneira, coloca, mais uma vez, o Estado como um forte agente de conflitos e devastação. Além disso, o dia 10 de agosto de 2019, dia em que fazendeiros se articularam pelas redes sociais e atearam fogo na Amazônia para declarar apoio a Jair Bolsonaro, ficou conhecido como “Dia do fogo” e apresentou um aumento de 179% dos focos de incêndio no sul do Pará em apenas três dias.

Ao falar sobre as queimadas que atingiram o Pantanal no ano passado, o entrevistado do Acampamento Renascer relembrou como foi esse período para a comunidade. “Na época da seca, passamos muito apuro. Pegou fogo beirando o nosso acampamento, não sabemos quem colocou, mas ficamos tampados de fumaça. Pegou fogo até na barraca dos companheiros e companheiras que tiveram que correr na lagoa para pegar água e apagar o fogo. Foi uma dificuldade tremenda, inalamos muita fumaça. Não foi um ano fácil, o acampamento estava quase toda hora tampado de fumaça e tínhamos bastante crianças e idosos. Nos tiraram de lá falando que iria melhorar, e o local até que melhorou, mas as condições não.” Quando perguntado sobre a possibilidade de o fogo ter sido iniciado próximo ao acampamento para retirá-los do local, ele assentiu. “Acho que tudo que eles fizeram foi para tentar tirar a gente de lá, a questão do fogo, a fumaça e também as promessas, tudo indica que era isso mesmo”.

Cerrado devastado no Mato Grosso. (Foto: Thomas Bauer / CPT)

Não tem terra e não tem água

O ano de 2020 também registrou o segundo maior número de conflitos por água no Brasil (350), ficando atrás apenas de 2019 (502). O aumento desses conflitos levou a sua inclusão, pela primeira vez, no relatório anual da CPT. Mato Grosso lidera, novamente, como o estado onde mais ocorreram conflitos por água. Do total de 36 casos na região, 22 ocorreram nesse estado. As comunidades de pescadores e ribeirinhos, populações cujos espaços de vida, de aquisição de alimento e de geração de renda dependem dos rios, lagos e mares, são as mais afetadas pela “escassez” relativa dos recursos hídricos. Essas comunidades foram diretamente atingidas por 52% dos conflitos por água em 2020. Pequenos proprietários rurais (10%), indígenas (8%), atingidos por barragem (7%), geraizeiros (6%) e assentados (5%), também estão entre os grupos mais atingidos.

O aumento dos conflitos, tanto por água quanto por terra, é um reflexo do que já vem ocorrendo nos últimos anos, mas é, também uma consequência da atual posição política brasileira que incentiva a violência e o preconceito contra as comunidades tradicionais, retirando seus direitos básicos de acesso à terra e a água e estabelecendo políticas que degradam cada vez mais o meio ambiente. 

O senhor do Acampamento Renascer que concedeu essa entrevista, começou sua fala com um importante enunciado. “A luta pela terra não é fácil. Ela é resistência, é debaixo de lona, é no sol quente, na poeira, faltando água. Você precisa resistir até conseguir um pedaço de terra”. E terminou seu depoimento com uma esperança. “O meu maior sonho é ter uma terra para trabalhar. Não só eu, mas todas as famílias que estão aqui. Por isso ainda estamos resistindo”.

[1] Estagiária com supervisão de Claudio Nogueira.