PRODUCCIÓN - DIÁLOGOS
223 - Apropriação da água no nordeste brasileiro
APROPRIAÇÃO DA ÁGUA NO NORDESTE BRASILEIRO
Claudio Dourado de Oliveira *[1]
O crescimento do agronegócio é baseado na acumulação ou apropriação de água e de territórios camponeses e indígenas. Este artigo, do antropólogo Claudio Dourado, da Comissão Pastoral da Terra do Brasil, vincula o agronegócio, o turismo de negócios e a política pública de captação e uso da água na Chapada Diamantina, Bahia.
O fenômeno da acumulação ou apropriação das águas acontece quando poderosas corporações, instaladas em um território, assume o controle dos recursos e das bacias hidrográficas para fins privados e colocando em risco os ecossistemas e o acesso a este recurso, por parte das comunidades locais (PNUD de 2016).
Isso acontece, mesmo que a terra, o território e os recursos, incluindo a água, sejam reconhecidos como um direito das comunidades tradicionais e povos indígenas, de acordo com a Convenção 169 da OIT (Art. 26, nº 1) e ratificado pelos Estados, incluindo o Brasil, em 25 de Julho 2002, se comprometendo em "garantir o reconhecimento legal e proteção a essas terras, territórios e recursos" (Art. 26, nº 3).
Agronegócio, turismo de negócios e grilagem de água na Chapada Diamantina
O agronegócio chegou na chapada Diamantina por volta da década de 1980, na região já tinha duas heranças malditas. Primeiro, os herdeiros das sesmarias ainda mantinham grande parte dos camponeses em sistema de meeiros. Esses lavradores desmatavam as florestas para o suposto proprietários extrair a madeira, criar gado e enquanto implantava as pastagens cultivavam mamona, milho e feijão e ainda eram obrigados pagar metade da produção. Quando toda a fazenda era explorada esse camponês deixava de ser útil e o latifundiário soltava os animais nas roças, queimavam as casas e os enxotavam do campo.
Segundo, a cultura do garimpo e a distância do Estado Oficial, criou no imaginário do povo um Estado paralelo, sustentado pelo coronelismo. Os camponeses estavam submetidos a um sistema de lealdade e gratidão a esses coronéis, chegaram a atuar como soldados em tempos de guerras, lutando na defesa desses coronéis.
Na época da chegada do agronegócio já existia algumas resistências, por parte dos acamponeses, a esse modelo de desenvolvimento, mas os movimentos sociais, que rebatiam o latifúndio agrário, ainda acreditavam que podiam conciliar produção camponesa com o agronegócio. Exatamente 40 anos depois, grande parte da sociedade percebe que esse desenvolvimento era uma farsa. Manteve as mesmas estruturas de opressão e dependência praticados pelo latifúndio e coronelismo. Isso prova que o processo de autonomia comunitária passa também pela mudança das estruturas sociais, culturais e politicas.
Hoje, assistimos um abandono total, por parte do Estado, no processo de industrialização e uma aposta no capital especulativo (rentismo no campo). Nesse modelo de desenvolvimento, o agronegócio tem preferência nos territórios onde ainda existe as últimas reservas dos recursos naturais, a exemplo da Chapada Diamantina, água em abundância, solos férteis e clima favorável; tudo isso para o agronegócio são vistos unicamente como fatores de produção – simplesmente mercadoria.
No entanto, a maximização dos benefícios do agronegócio é cada vez mais questionada. Por exemplo, em um estudo sobre o monopólio da produção de etanol no Brasil (Vinicius, Pitta e Mendonça, 2011) fica evidente que "... enquanto a produção de cana-de-açúcar continua a se expandir em grande velocidade no Brasil, acompanhado nos últimos anos por um declínio na produtividade, o que sugere que o aumento nos níveis de produção é devido à expansão da área ocupada por monoculturas" (Guide The global water grabbing de Kay and Franco, 2012). Assim, a rentabilidade da produção de cana-de-açúcar no Brasil depende da apropriação da terra e da agua.
Na exportação de Commodities estão embutidas a água, as florestas, a cultura, o suor e o sangue de nossos povos. Uma nação que tem o rentismo no campo e a especulação como política de Estado está sujeita a barbárie e é fadada ao fracasso, mantendo-se na periferia da economia mundial de forma submissa e colonial. Essas mudanças passam também pelo viés da política oficial. Nesse quesito ainda estamos reféns de uma onda muito conservadora. Mais da metade do legislativo, de uma forma ou de outra, no Congresso Nacional representa bancadas ligadas a esse modelo de desenvolvimento.
O mito de desenvolvimento, assim como o mito da modernidade serviu para encobrir as alteridades. Desconsideram e/ou negam todos os povos tradicionais e originários, com suas formas próprias de fazer, criar e viver. Quando não encontram uma forma de encobrir ou expulsar esses camponeses, exterminam, inclusive com o aval do Estado, unicamente por serem antagônicos a esse modelo.
Impacto ambiental e impacto nas comunidades
O agronegócio logo que se instalou no alto Paraguaçu, região de Ibicoara, e a água foi ficando escassa, o Estado entra em ação construindo a Barragem do Apertado, a poucos quilômetros da cabeceira do rio Paraguaçu, concluída em 1998, pela Companhia de Engenharia Ambiental da Bahia – CERB. Conforme estudos, essa barragem possui usos distintos, dentre os quais destacam-se a irrigação e o abastecimento doméstico, mas na prática o objetivo principal é atender as demandas hídricas da irrigação, comprovado nos últimos três anos em que acentuou o colapso hídrico no alto Paraguaçu (2015/17). Nesse período o rio chegou a cortar logo abaixo da barragem e, inclusive o sistema de abastecimento da cidade de Mucugê foi interrompido. A cidade estava abastecida por poços tubulares.
Diante disso, percebemos que o agronegócio afetam o meio ambiente, as questões socioambientais e impede o “uso múltiplo das águas” (Art. 1º - IV, Lei 9433); e toda a identidade dos povos, pois a noção de território, típicas da cultura camponesa, interligam sua relação com o espaço, tornando-se parte. Essa noção de territorialidade exige restrições de uso dos bens naturais, pois esses recursos são dimensões simbólicas intrínsecas na identidade camponesa, uma afinidade que define o estilo de vida do povo. Lá estão os acontecimentos, os fatos históricos, que mantem viva a memória das comunidades; estão enterrados os ancestrais e encontram-se os sítios sagrados, toda interação entre a visão humana e sua cosmologia.
O agronegócio, nesse contexto, não funciona apenas como uma técnica “moderna” de produção. Ele tem um caráter neocolonial. Quando o Estado propõe e disponibiliza recursos para o agronegócio, ele está propondo um processo de branqueamento da população. Nesse modelo, são válidos apenas técnicas eurocêntricas e os camponeses transformados em proletários, pois nessa realidade, apenas a mão de obra do camponês é necessária – muitas vezes como escravos.
Esse modelo único, à medida que esgotam todos os recursos migra para outra região, deixando os locais desolados com seus rastros de destruição. Atualmente, as empresas que atuavam em Ibicoara já tem extensões em Nova Redenção e Itaetê; e as empresas de Mirorós instalaram na região de Wagner e Utinga. Por onde passa destrói toda a técnica, o saber e a cultura do povo, e consequentemente todo o meio ambiente.
Apesar dos tratados internacionais (Organização Internacional do trabalho – OIT, Organização das Nações Unidas – ONU) e da Constituição Federal (CF – 1988. Art. 216, Inciso I e II) em que asseguram o direito das comunidades nas suas formas de expressão e o respeito aos modos de criar, fazer e viver; e da Própria Lei das Águas (nº 9433 Art. 7º) que prevê metas de racionalização de uso e a criação de áreas sujeitas a restrição de uso; o Estado pouco tem feito para defender esses povos e seus Direitos Costumeiros. Nos últimos três anos, por exemplo, só no subsistema hídrico do Rio Utinga, onze assentamentos, dez comunidades e três sistemas de abastecimento humano foram impactados, inclusive o da cidade de Lajedinho. Somando aproximadamente 2000 famílias sem água para o consumo humano, para as criações e para a produção.
Políticas ecológicas encobertas
A Chapada Diamantina mesmo sendo decretada como Parque Nacional e parte em Área de Preservação Ambiental – APA não está imune do passivo ambiental do Agronegócio, todos os rios antes do parque e da APA estão tomados pela agricultura irrigada empresarial.
As belezas da Chapada Diamantina não são suficientes para garantir uma perspectiva de equilíbrio no futuro. São necessários planos de manejo tanto da bacia hidrográfica de forma integral como do Parque Nacional. Hoje, todas suas riquezas estão ameaçadas, primeiro pelo modelo de Parque aplicado, o “Culto ao Silvestre” baseado no modelo Norte-americano que exclui as pessoas, os nativos com toda sua sabedoria e convivência no território e permite a entrada de grandes empresas de turismo. Esse monopólio do turismo empresarial, elimina as comunidades e expõe a todas as mazelas das leis modernas capitalistas de mercado. Esse ecologismo é parte de modelo global de exploração inconsequente dos recursos naturais. São muitos pescadores, comunidades quilombolas que estão sujeitas de serem eliminadas do perímetro do parque contrariando a legislação quilombola, simplesmente, pelo fato do turismo está a serviço do mercado global – pensado para fora.
Existem algumas gênesis de turismo comunitário, isso parece interessante, reforça a economia popular e garante autonomia dos territórios. A comunidade de Remanso, em lençóis, tem muito a nos ensinar nessa alternativa, provando que não existe um equilíbrio ambiental sem atuação de forma integrada nas questões território/culturais, socioeconômicas e ambientais.
Água e proteção legal das comunidades
Mesmo que a Lei das Águas (9.433) garante que a prioridade, entre os usuários, é o consumo humano e a dessedentação animal, em casos de escassez. A falta de manejo das bacias hidrográficas, como estrategia do Estado para expansão do agronegocio, dificilmente serão capazes de garantir esse direito.
Por outro lado, o conceito de “usuário” não atende toda a afinidade que as comunidades têm com os rios. O rio é parte do território onde praticam o lazer, as rezas, a economia, as histórias enfim, onde tece a vida. Tratar a política das águas nessas comunidades meramente como ações de políticas públicas é, de certa forma, transformar um bem natural indispensável na cultura popular em mercadoria. Discutir o problema da água é discutir as autonomias das comunidades diante de um Estado privatista e monocultural, é manter essa relação com os recursos naturais para além das leis do mercado.
Diante de todos esses problemas na Chapada Diamantina, os movimentos sociais lideram permanentemente a campanha de conservação da bacia do rio Paraguaçu. A campanha é um espaço de discuções, denúncias e soma de experiências, tanto nas resistências das comunidades quanto na política emancipadora dos povos tradicionais e originarios.
Em nível de América do Sul, a realização de eventos alternativos, como o FAMA – Forum Alternativo Mundial da água está afirmando uma luta comum pelo direito à água e contra interrupçao do acesso público desse recurso. Essa luta tem várias frentes de trabalho. Um desses eixos é o campo jurídico estabelecido em instituições como o Tribunal Latino-Americano da Água. Embora a maioria dos casos apresentados a este Tribunal denuncie fortemente a poluição e o impacto ambiental dos recursos hídricos produzidos pela mineração e outras atividades extrativistas, as demandas que vinculam ao agronegócio e o acúmulo de fontes de água não são muitas. Por isso, é importante continuar aprofundando a análise sobre a relação do agronegócio e a restrição dos usos da água para fins privados, questionando esses processos globais de dominação e, junto com as comunidades, refletir sobre a colonialidade dos imaginários e repensar outros mundos possíveis, para os povos e pelos povos.
*[1] Claudio Dourado de Oliveira
Antropólogo – Universidade Salesiana de Quito/UPS e pós-graduado em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás/UFG, atua na Comissão Pastoral da Terra, Região Centro Norte da Bahia – Brasil.